quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Saul Leblon/ Carta Maior



27/02/2013

Pratos cuspidos e trilhos entalados


O governo vai em romaria aos grandes centros financeiros mundiais para atrair investidores interessados em construir ferrovias, estradas, portos e aeroportos no país. 

Não é um passeio. Pode ser uma cartada decisiva.

A continuidade do desenvolvimento requer algo em torno de R$ 500 bilhões em investimentos para dilatar a fronteira logística de um sistema econômico originalmente projetado para servir a 30% da sociedade. 

O Brasil corre contra o tempo, mas o momento é favorável.

O governo oferece projetos de concessão pré-esquadrejados pelo Estado.

O interesse público define as prioridades , prazos, qualidade do serviço e taxas de retorno – atraentes, diga-se, de até 15% ao ano.

Num mundo estagnado pela desordem neoliberal, com juro negativo e dinheiro embolorando no caixa das corporações, pode dar certo.

Mas a romaria que começa nesta sexta-feira não visa apenas o capital externo. 

Na verdade, destina-se também a desfechar um novo safanão no rentismo local.

Em 2012 ele já fora abalroado por um corte de 5,5 pontos na taxa da Selic.

Dilma roçou baixo o pasto gordo da renda fixa, livre, leve e líquida propiciada pelos títulos públicos.

Ainda assim a manada hesita.

Resiste em migrar dos piquetes de engorda de curto prazo para canteiros de obras de longo curso.Mesmo com taxas de retorno maiores que a do juro real da dívida pública.

A relutância não é totalmente espontânea.

Anima-a a lira musical conservadora que sassarica dando voltas no salão, a embalar expectativas de que o Brasil de Dilma vai acabar na próxima curva.

A estratégia tem lógica.

Trata-se de engessar a economia em um imenso gargalo de infraestrutura, capaz de emprestar alguma relevância ao discurso do senhor Neves, em 2014.

O governo tenta contornar a arapuca sensibilizando o investidor estrangeiro.

Mas não é o único obstáculo que enfrenta.

O país que pretende construir 10 mil kms de ferrovias nos próximos anos não dispõe de uma única fábrica de trilhos para atender a demanda prevista.

O colapso dos trilhos, curiosamente, não integra os hits da lira musical conservadora.

De todos os colapsos alardeados pelas manchetes nos últimos meses, o dos trilhos é o mais palpável.

Não como ameaça.

É a realidade desconcertante dos dias que correm.

Um trecho de 600 km da Ferrovia Norte-Sul, que ligará as cidades de Ouro Verde (GO) e Estrela D"Oeste, em São Paulo, em construção pela Valec, está com obras prestes a parar.

Por falta de trilhos, informa o insuspeito jornal Valor Econômico.

Que a fuzilaria midiática não se debruce sobre esse férreo gargalo causa espécie.

O Brasil, ao lado da Austrália, é o maior exportador de minério de ferro do mundo.

Não qualquer minério.

A mina de Carajás, no Pará, concentra a maior reserva de ferro de alto teor do planeta.

Trata-se de uma reserva nuclear rodeada pelo maior estoque de manganês do Brasil, além de ouro, dez jazidas de cobre e quatro de níquel.

Carajás, próximo de Serra Pelada, tem estoque para cerca de quatro séculos de exploração.

O paradoxo não fica nisso.

A China compra 70% do minério de ferro embarcado pelo Brasil.

E o país importa da China cada centímetro de trilho de aço de que necessita.

Quando há problema com as importações, como no caso da Valec, o comboio descarrila. 

Como entender que o senhor Neves, seus padrinhos de partido e de projeto não explorem um desconcerto que grita ao sol do meio dia?

Uma rápida recapitulação ajuda a entender o paradoxo dentro do paradoxo.

A Vale do Rio Doce, detentora da jazida de Carajás, foi privatizada por R$ 3,3 bilhões, em 1997. 

Um trimestre padrão de lucro líquido da empresa , a exemplo do 3º trimestre de 2010, pagaria o valor atualizado da transação. 

No mesmo ano de 2010, o último sob a gestão do tucano Roger Agnelli, que ocupou a presidência executiva da Vale desde 2001, a empresa exportou US$ 28 bi em minério de ferro bruto.


Fundamentalmente para a China, no valor médio de US$ 130 a tonelada.


No mesmo período o país lançou um edital internacional para adquirir 244,6 mil toneladas de trilhos.


Fundamentalmente da China e secundariamente do leste europeu.


Preço médio: US$ 864 a tonelada.


Quase sete vezes o valor do minério bruto embarcado. 


Durante seus dois governos, Lula insistiu inúmeras vezes, em público e em encontros privados, para que a Vale investisse em siderurgia e beneficiasse o minério brasileiro.


Transformando-o em trilhos.


Uma laminadora para esse fim adquire escala econômica a partir de 500 mil toneladas de trilhos ano. 


A demanda do país chegou a 496 mil toneladas em 2010 .


Ou seja, antes de deflagrar os planos que agora projetam o maior investimento ferroviário dos últimos 40 anos.


O Brasil nem sempre foi assim.


Em 1996, um ano antes de privatizar a Vale do Rio Doce , o governo Fernando Henrique Cardoso desativou também o laminador de produção de trilhos da Companhia Siderúrgica Nacional, a CSN criada por Vargas. 


Fez barba e bigode.


Entregou o minério bruto e inviabilizou a agregação de valor local. 


Não foi um plano demoníaco.


Foi a pacífica convicção na complementariedade dos livres mercados.


Movia-o a fé esférica nas vantagens comparativas 'naturais' --que a história não tem direito de contrariar, conforme o credo neoliberal.


Ao Brasil cabe o que sabe fazer de melhor: raspar Carajás até o fundo do tacho. 


E abastecer o mundo.


O resto importa-se.


Acionistas da Vale nunca reclamaram dessa lógica.


Nem a mídia que agora fuzila a Petrobrás, pelos índices de nacionalização das encomendas.


Nem o colunismo que ecoa a 'pátria dos acionistas', inconformado com o desvio de dividendos da estatal para a 'irrealista' meta de construir quatro refinarias, que agreguem valor ao pré-sal.


Enquanto comandou a Vale, com a cobertura dos acionistas, da banca, da mídia amiga e dos tucanos, Roger Agnelli jamais permitiu tamanho disparate. 


Foi assim que seu nome acabou alçado à galeria dos melhores CEOs do planeta. 

Um seleto grupo de ‘matadores’ de um capitalismo reflexo, rapinoso e imediatista, em que as coisas dão certo quando tudo dá certo.

Quando dá errado, como na crise de 2008, a Vale de Agnelli foi a primeira empresa brasileira a demitir funcionários: 1.300 numa tacada.

O herói pró-cíclico deu certo esburacando o país para saciar a fome das siderúrgicas internacionais. 

Graças a sua resistência, a obra tucana de privatizar o subsolo e esfarelar a superfície industrial não se rompeu na siderurgia.

Hoje o Brasil é um paradoxo mineral: exporta ferro e vive sob a ameaça de um colapso na oferta de trilhos. 

O governo do PT teve tempo.

Poderia ter montado uma laminadora estatal de trilhos, por exemplo. Por que não o fez, cobrarão as viúvas e viúvos de Agnelli na mídia.

Porque os mesmos que agora retrucam assim – não sem razão – seriam os primeiros a disparar alarmes e sinalizadores contra 'o estatismo ineficiente e empreguista' do PT.

Ou não será exatamente como agem hoje em relação à Petrobrás e ao pré-sal? 

FHC reclama que Dilma cospe no prato fino que os seus oito anos de governo legaram ao país.

O colapso dos trilhos revela a gororoba de angu de caroço vendida como caviar.

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