quarta-feira, 31 de julho de 2013

Crimes Hediondos como classificá-los?

Antônio David: Estadão exalta Lei de Crimes Hediondos para pequenos traficantes; a empresários, não

publicado em 30 de julho de 2013 às 20:14

por Antônio David, especial para o Viomundo
Está em pauta no Congresso Nacional o Projeto de Lei 5900/13, de autoria do senador Pedro Taques (PDT-MT). Entre outras medidas, o Projeto em questão inclui na Lei de Crimes Hediondos o crime de corrupção.
Ao contrário de um certo senso comum, que contamina até mesmo a esquerda, penso que não há nada a comemorar nessa medida.
De autoria do ex-deputado federal Roberto Jefferson e editada em 1990 para contemplar o clamor punitivo criado pela mídia, a Lei de Crimes Hediondos é um dos pilares jurídicos da violação institucional dos Direitos Humanos no Brasil.
O que pretendo discutir diz respeito a isso, mas não é exatamente isso. Quero discutir uma questão muito curiosa no debate sobre a inclusão da corrupção no rol dos “crimes hediondos”.
Questiona-se a inclusão da corrupção na Lei de Crimes Hediondos, sob o argumento da ineficácia da medida, mas não se questiona a própria Lei de Crimes Hediondos.
Vejamos.
Desde que foi lançado, o PL 5900/13 vem sendo criticado por juristas e pela imprensa. O argumento varia, mas o núcleo do argumento é o mesmo: tal medida é ineficaz, pois não é estabelecendo uma classificação mais dura que se resolve o problema da corrupção.
Sem dúvida, esse argumento é correto. Não é nova a ideia de que a eficácia da pena não está na crueldade ou no tamanho da pena, mas na convicção da sua aplicação, ou seja, na certeza de que não haverá impunidade. Remonta ao jurista italiano Cesare Beccaria já no século XVIII.
A dúvida é: se isso é verdade para a corrupção, por que razão não vale para o pequeno traficante?
Uma resposta canônica a essa pergunta é a que o presidente da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), Nelson Calandra, oferece: “o hediondo deve ser reservado à grave lesão dos direitos humanos”. É isso o que os estudantes de direito ouvem. É esse o senso comum que está na boca dos operadores do direito em nosso país.
Façamos um exercício. Deixemos por um instante de lado o debate sobre legalização das drogas, e tentemos nos colocar na cabeça deste senso comum, para o qual venda de drogas é algo “hediondo”.
Se fizermos esse exercício, ainda assim ficará a pergunta: se a venda de 50g de maconha constitui “grave lesão dos direitos humanos”, a corrupção constitui o quê? Vê-se que, até de um ponto de vista reacionário, a resposta canônica não é convincente.
Certamente uma parte daqueles que questionam o Projeto de Lei em questão o fazem de boa fé. Questionam-no por se oporem à Lei de Crimes Hediondos. Contudo, há aqueles que se opõem ao PL 5900/13, mas curiosamente não se opõem à Lei de Crimes Hediondos.
Por quê? O que está em jogo para estes? Será a defesa dos políticos corruptos? Talvez.
Mas há um motivo de maior importância: se a corrupção for incluída na Lei de Crimes Hediondos, ela passará a enquadrar não apenas políticos e agentes públicos que incorrerem em crimes de corrupção, mas também empresários e operadores do mercado que cometerem corrupção ativa.
Há alguns dias, o jornal O Estado de S. Paulo publicou um editorial no qual caracteriza o dito Projeto de Lei como Populismo penal.
Nesse editorial, o Estadão afirma:
“/…/ receberão o mesmo tratamento tanto um empreiteiro mancomunado com um ministro de Estado fraudando uma licitação quanto o guarda de trânsito que recebe propina para não multar um veículo parado em local proibido” (o grifo, em negrito, é meu).
Ato falho?
Claro que a preocupação do grupo Estado não são os guardas de trânsito. Empreiteiros, banqueiros, doleiros e afins estão em pânico com o PL 5900/13.
Agora vejam que graça! Poucas semanas antes, o mesmo jornal publicou um outro editorial, chamado O pequeno traficante, claramente favorável ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), quando este órgão tomou a lamentável e decisão de recomendar aos juízes criminais que apliquem a Lei de Crimes Hediondos ao julgar pequenos traficantes.
Nesse mesmo editorial, o Estadão faz menção ao ministro Luiz Fux, do STF, que teria afirmado que “se tratarem os pequenos traficantes de forma leniente, os tribunais estarão disseminando o sentimento de que o crime compensa”. Ora, se esse raciocínio vale para os pequenos traficantes, não deveria valer para os empreiteiros?
Moral da história: para os pequenos traficantes, Lei de Crimes Hediondos; para os empreiteiros, não. Incoerência?
Certamente. Mas, antes que se pense que estamos diante de uma incoerência qualquer, na verdade estamos diante de uma incoerência organizada: os primeiros, pequenos traficantes, são em geral negros e pardos e vivem nas periferias; já os empreiteiros em geral são brancos e não raro habitam coberturas em bairros nobres. Há uma razão por detrás do casuísmo na diferença de atitude. Ela retrata a persistência, no presente, de nosso passado escravagista.
Desde que a Lei de Crimes Hediondos foi editada e ainda hoje a rotulação de “hediondo” é utilizada comopanaceia em face do pânico por segurança pública alimentado nas classes abastadas da sociedade. Não desinteressadamente, essa panaceia vem acompanhada do sistemático aumento de penas.
Ocorre que essa panaceia só é evocada, autenticamente, quando convém, ou seja, quando se trata de punir os delitos praticados por uma parcela muito específica da sociedade: os que estão à margem do mercado de trabalho, a população negra, que vive nas periferias, e que é a clientela selecionada pelo sistema penal. Foi o que o STJ fez, e o Estadão aplaudiu em seu esdrúxulo editorial.
A população prisional por tráfico de drogas representa 25% dos presos no Brasil. A grande maioria destes são jovens negros e pobres, com baixo grau de escolaridade, presos portando em média 66,5g de entorpecentes.
Na lógica da Lei de Crimes Hediondos, há um pânico geral na sociedade e estes homens e mulheres representam perigo para a sociedade. Será que para os juízes e promotores que os condenam, para os ministros do STJ e para o grupo Estadoa sonegação fiscal praticada pela Globo representa perigo para a sociedade?
O que é verdadeiramente perigoso? Qual é a raiz do verdadeiro perigo? Se formos à raiz do problema, ao invés de indivíduos com desvios de caráter ou “traços lombrosianos”, provavelmente chegaremos num ponto bem diverso: na abissal desigualdade de nosso país. Assunto pelo qual estes que louvam a Lei de Crimes Hediondos não se interessam. Por que será?
A Lei de Crimes Hediondos é uma lei de inspiração fascista. Não deveria existir. Não deveria ser aplicada nem para corrupção nem para pequenos traficantes. Ao criticar o enquadramento da corrupção na Lei de Crimes Hediondos, juristas e órgão de imprensa estão corretíssimos. A incoerência está em denunciar a incorporação da corrupção na dita Lei, ao invés de se opor à existência dessa triste Lei.
Se fossem coerentes, todos estes que se opuseram ao PL 5900/13 deveriam pronunciar-se não contra o Projeto, mas contra a própria Lei de Crimes Hediondos. Deveriam reivindicar sua revogação. Mas não dá pra esperar coerência no país que foi o último a abolir a escravidão no mundo.
PS 1: Não é preciso dizer que o PL 5900/13 foi uma dentre as várias respostas dadas pelo Congresso Nacional às manifestações de junho e julho. Provavelmente a contragosto. Em 2005, o então deputado Babá (PSOL) apresentou um projeto com o mesmo propósito. Caiu no vazio.
PS 2: Claro que a Lei de Crimes Hediondos não esgota o problema, pois mais da metade dos que cumprem pena no Brasil foram condenados por crimes não enquadrados por essa lei, como furto e roubo. Todos os dias homens e mulheres são condenados a 2, 3, 4 ou mais anos de prisão por furtarem pacotes de bolacha ou por roubarem R$ 10. Juízes e promotores sentem fazer um bem à sociedade ao condená-los. Não raro, exaltam contentamento nas bizarras sessões de condenação: condenam enquanto fazem piada e vêem as novidades no facebook.
Antônio David é pós-graduando em filosofia na USP.  Mantém  no Facebook uma para divulgação de pesquisas e análises sobre o Brasil.

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