sexta-feira, 24 de abril de 2015

Amável Donzela, Caridade… Os nomes dos navios negreiros e o cinismo dos vendedores de escravos


escravos
Publicado no Medium.
Não há páginas da história da escravidão que não nos envergonhem.
Esta, talvez ainda pouco abordada, trata dos dissimulados nomes que os donos das embarcações davam as seus infernos flutuantes, os navios negreiros — ou navios “tumbeiros”, que vem de tumba, sinônimo de caixão.
As histórias desses barcos de nomes revoltantes estão expostas no mais amplo estudo do comércio transatlântico de seres humanos, iniciado ainda na década de 1960, e reunido pela Universidade de Emory (EUA), no site slavevoyages.org. É partir desta pesquisa que reunimos aqui uma lista com alguns dos mais nojentos nomes encontrados.
Wilson Prudente é relator da Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB do Rio de Janeiro e um dos brasileiros descendentes de escravos mais engajados em recuperar a história do povo de seus antepassados africanos. Ele garante que os abjetos nomes desses barcos não eram por acaso: “Eram para intimidar.”
Daniel Domingues da Silva faz parte da equipe responsável pela pesquisa. Ele garante que a escolha dos nomes era feita pelo dono do barco — nunca por seu capitão. Daniel, no entanto, ressalta que havia, entre muitos comerciantes de escravos, uma crença doentia de que eles estavam fazendo “um bem para os escravos”.
— Eles pensavam que estavam ajudando a resgatar a alma dos africanos para o reino de Deus, ou seja, trazendo eles de uma terra onde o paganismo imperava para a cristandade.
>>>Clicando no nome dos barcos, você acessa o link da pesquisa no site slavevoyages.org. Lá, você pode cruzar a pesquisa com outras variáveis.<<<

1. Amável Donzela

(1788 a 1806)

Bandeira: Portugal
Tipo de embarcação: galera
Travessias realizadas: 11
Escravos transportados: 3.838
Escravos mortos durante a viagem: 298
Escravos desembarcados no Brasil: 3.540
Tripulação (média) = 31
Foi no dia 2 de outubro de 1788 que o capitão José de Azevedo Santos e mais 33 tripulantes deixaram Portugal para inaugurar uma lamentável história a bordo da galera Amável Donzela. Nos 7 anos seguintes, o barco realizou 7 viagens assassinas, sempre traçando o mesmo caminho de horror: de Lisboa para o porto de Cacheu, no centro-oeste africano, e de lá, entupido de seres humanos acorrentados, para o Maranhão, no Brasil.
À época, Cacheu era uma pequena cidade que se formava em volta do movimentado porto da primeira colônia fundada pelos portugueses na região, onde hoje é Guiné-Bissau, a Guiné Portuguesa. Desde 1675, havia em Cacheu um intenso comércio escravagista, demérito do principal fomentor do setor por ali, a Companhia de Cacheu.
Os escravos eram subjulgados em uma região um pouco mais ao norte, na Senegâmbia (hoje: Senegal e Gâmbia). Não era fácil vencer os escravos na Senegâmbia, região com alto índice de muçulmanos. O historiador Daniel Domingues da Silva, um dos responsáveis pelo estudo, aponta que a rejeição à escravidão em áreas muçulmanas era muito mais violenta do que em outras partes da África.
No Brasil, o destino dos homens, mulheres e crianças desta região era o Maranhão, onde serviriam como mão de obra para a cadeia do algodão, que vigorou no norte do Brasil. A produção era exportada principalmente para a Grã-Bretanha, em pleno desenvolvimento industrial.
É claro que ninguém tinha direito a um enterro. Para evitar contaminação no barco, o que significaria perda de mais mercadoria, os corpos eram jogados no mar. Wilson Prudente garante que, muito adoentados, alguns escravos eram amarrados a pedras e lançados ao fundo do oceano ainda vivos.
Entre 1792 a 1796, o capitão Joaquim Adrião Rosendo, que boa pessoa não deveria ser, liderou a Amável Donzela. Passava quase metade do ano no trajeto Europa — África — Américas. Foi o fim da primeira era do barco, que só voltaria ao comércio negreiro em 1804, ainda mais cruel e assassino, já com outro itinerário.
Em vez de passar em Cacheu para pegar escravizados da Senegâmbia, o caminho da Amável Donzela agora seguia para Benguela e Luanda, em Angola, ainda mais abarrotados — desta vez com humanos do Centro-Oeste da África, área mais profundamente dominada pelos portugueses em toda a costa atlântica da África à época. A política escravagista portuguesa na região, especialmente em Luanda, deu-se por uma complexa parceria com o reino do Congo, que esfacelou o reino do N’dongo a partir do século 16. Presos, hereges, adúlteros, segundo o historiador Daniel Domingues da Silva, já eram escravizados na região ainda antes da chegada dos portugueses.
Toda essa história, certamente, facilitou o trabalho assassino da Amável Donzela em 1804 e 1805, em direção ao Rio, e em 1806, em direção ao porto de Pernambuco. Começava, justamente nesta época, justamente neste trajeto Angola — Brasil, o maior boom escravagista de toda história do Atlântico. Apenas nessas três últimas viagens do barco, 1.704 seres humanos foram acorrentados e embarcados a força para a América.
Da África a América, a Amável Donzela agora era mais lenta. Em vez dos 30 dias médios da década passada, a viagem passou para cerca de 55 dias. Mais tempo de horror e morte dentro do barco. Só nestas últimas três travessias, 170 morreram, 10% dos embarcados.

2. Boa Intenção

(1798 a 1802)

Bandeira: Portugal
Rota: Angola — Brasil
Tipo de embarcação: galera
Travessias realizadas: 2
Escravos transportados: 845
Escravos mortos durante a viagem: 76
Escravos desembarcados no Brasil: 769
Tempo de travessia África/América (média): 51 dias
1798 foi um ano marcante na história da escravidão brasileira. Na Bahia, a Conjuração Baiana, também conhecida como Revolta dos Alfaiates, não tinha a reivindicação abolicionista como prioridade, mas sim a independência brasileira (e baiana) de Portugal. De qualquer modo, a presença de alguns escravos (especialmente os mulatos, já brasileiros) na mobilização revestiu a luta de um caráter popular.
Os agitadores principais foram duramente punidos pelo governo colonial brasileiro/português. Líderes foram executados em praça pública. Muitos escravos foram açoitados no Pelourinho.
Outra condenação levou o escravo alfaiate Cosme Damião Pereira Bastos a se tornar um dos poucos descendentes de africanos que vieram ao Brasil e retornaram ao continente natal de sua família. É claro que ele não foi a passeio, encontrar a raiz dividida. Preso, torturado, foi condenado a dez anos de degredo numa prisão de Benguela, em Angola.
Talvez Cosme Damião tenha cruzado no caminho com mais um barco negreiro de nome safado, a galera Boa Intenção, que em setembro de 1798 deixou Luanda e, durante 42 dias, fez uma viagem infernal até a cidade de Rio de Janeiro, já capital da Colônia.
O capitão do barco Marcos Guimarães Costa deu seu inescrupuloso assento para Anacleto Ferreira Vasconcelos, que conduziu a segunda viagem da Boa Intenção ao Rio de Janeiro, de janeiro a março de 1802. Foi uma jornada brutal. Primeiro embarcou escravos em Benguela. Depois, provavelmente já superlotado, embarcou mais escravos em Luanda.
Em 60 dias de um longo martírio que não se encerraria na chegada, 43 africanos morreram e foram atirados ao mar. Só em 1802, a estimativa é que 88.814 escravos tenham desembarcado no Brasil, a maioria mercadoria de barcos ingleses. É o nono ano mais lamentável do comércio escravista brasileiro.

3. Brinquedo dos Meninos

(1800 a 1826)

Bandeira: Portugal/Brasil
Tipo de embarcação: bergatim
Travessias realizadas: 11
Escravos transportados: 3.179
Escravos mortos durante a viagem: 220
Escravos desembarcados no Brasil: 2.959
Tempo de travessia África/América (média): 70 dias
Destino de todas as viagens: Bahia
O barco tinha fácil entrada em diversos portos africanos. Em 1800, a viagem começou em Costa da Mina, uma intensa região que hoje abrigaria países como Nigéria, Gana e Benim. Comerciantes de Salvador tinham íntima relação profissional com os traficantes da Costa da Mina, tanto que Lisboa, por vezes, teve que interferir nesse comércio direto para evitar perda de arrecadação de impostos.
Em 1801, a partida do Brinquedo dos Meninos deu-se em São Tomé e Príncipe. Já em 1805, com 390 escravos a bordo, saiu de Whydah — hoje, Benim. No ano seguinte, a viagem partiu de Badagry, na costa da Nigéria. O barco retornou a Costa da Mina em 1808, 1810 e 1812, antes de interromper os trabalhos para o Brasil por um período de dez anos. Em 1822, 1825 e 1826 o barco negreiro foi comprar seres humanos em Cabinda, onde hoje se dá uma intensa luta separatista de Angola, ao norte deste país africano.

4. Caridade

Quatro diferentes embarcações sob esse nome(1799 a 1836)

Bandeiras: Portugal e espanhola
Tipo de embarcação: bergatim, escuna, sumaca e galeota
Travessias realizadas: 20
Escravos transportados: 6.263
Escravos mortos durante a viagem: 392
Escravos desembarcados no Brasil: 5.871
Tempo de travessia África/América (média): 50 dias
Pelo menos quatro embarcações transportaram escravos sob o irônico nome de Caridade. Somadas, elas carregaram o incrível número de 6.263 pessoas e, claro, não fizeram caridade para nenhuma delas. Ao contrário: 392 pessoas morreram nesses barcos. Na primeira década dos serviços de mortes e sequestros, o barco tinha destino o Rio de Janeiro, ora recolhendo africanos em Benguela, ora em São Tomé.
Em 1815, uma galeota chamada Caridade despejou em Pernambuco apenas 301 dos 345 negros que embarcaram no barco. De 1819 a 1836, foi uma escuna que exibiu vergonhosamente o nome de Caridade pelos ventos do Atlântico, deixando a região do Benin em direção a Bahia, rota muito frequente ao longo dos séculos.
A única embarcação Caridade que navegou com bandeira espanhola também mostrou toda a crueldade que o nome “escondia”, em 1833. Deixando Bonny, no extremo sudeste de onde hoje é a Nigéria, o barco foi capturado pelos britânicos no trajeto ao Brasil.

5. Feliz Destino

(1818 a 1821)

Bandeira: Portugal
Tipo de embarcação: bergatim
Travessias realizadas: 3
Escravos transportados: 1.139
Escravos mortos durante a viagem: 104
Escravos desembarcados no Brasil: 1.035
Todas as viagens com destino ao nordeste brasileiro
No estudo da slavevoyage, não há exatidão do porto de destino de todos os barcos que vinham ao Brasil. Muitos recebem registro apenas de uma grande região, mas não seus portos específicos. É o caso de mais um bergatim de nome canalha, o Feliz Destino. Todas as três viagens do barco, recheada de crimes contra a humanidade, estão registradas para desembarcar em Pernambuco, mas isso pode significar outros portos do nordeste brasileiro, como Maceió, Paraíba, sem contar os próprios portos pernambucanos de Recife, Porto de Galinhas e Maria Farinha (a 20km do Recife).
Por suas belezas, bem que o viajante que chegava a essas terras poderia considerar o destino um feliz destino. Não os escravos, é claro. Esses iriam trabalhar sob regime de prisão e tortura, em especial, nos engenhos de açúcar.
O comércio de seres humanos para Pernambuco não foi tão largamente documentado como para Rio de Janeiro e Salvador, mas, o estudo da Universidade de Emory, coloca o porto do Recife como o quinto mais movimentado de todo o mundo no quesito desembarque de escravos.
Como ocorreu com o Feliz Destino, 87,2% dos casos das viagens com destino a Pernambuco também tiveram Pernambuco com o porto de origem da viagem, segundo o estudo Financiamento e Organização do Tráfico de Escravos para Pernambuco no Século XIX (Albuquerque, Versiani e Vergolino). Isso indica que os líderes do comércio de seres humanos na região já eram residentes do nordeste brasileiros — na maioria, portugueses.
De todas as viagens do bergatim Feliz Destino, a mais mortal foi a de 1821, conduzida pelo capitão Prudêncio Vital de Lemos.

6. Feliz Dias a Pobrezinhos

(1812)

Bandeiras: Portugal/BrasilTipo de embarcação: bergatimTravessia realizada: 1Duração da viagem: 94 diasEscravos transportados: 355Escravos mortos durante a viagem: 120Escravos desembarcados no Brasil: 235Porcentagem de escravos mortos durante a viagem: 33,8%
Se houvesse um carinho especial pela história dos africanos no Brasil, certamente, estudaríamos na escola a desgraçada saga do bergatim Feliz Dias a Pobrezinhos, que, além de matar 120 pessoas em sua única viagem, carregou consigo esse nome asqueroso.
Em 17 de dezembro de 1811, o barco deixou a África com 355 negros escravizados. Ao contrário da maioria dos seres humanos enviados para o Rio de Janeiro, o Feliz Dias a Pobrezinhos havia carregado seu porão com mercadoria viva na costa africana voltada para o Oceano Índico — e não no Atlântico. Do porto de Moçambique, saíram escravos colhidos no interior do sul da África, como Zambêzia.
Alguns desses escravos partiam para o Brasil já eram escravos de uma primeira migração forçada, já que os portugueses importavam para Moçambique africanos de ilhas como Madagascar, Ilhas Seychelles e do arquipélago de Comores, todos no Oceano Índico, para depois revendê-los ao Brasil. Não há como ter certeza de onde saíram os pobrezinhos que, em vez de felizes dias, tiveram 94 dias de terror no mar.
É bem possível que muitos outros dos 235 que resistiram a tanta tortura não sobreviveram nem mesmo os primeiros dias de Brasil. Não sabemos, por enquanto. Se houvesse um carinho especial pela história dos africanos no Brasil, talvez já soubéssemos.

7. Graciosa Vingativa

(1840 a 1845)

Bandeiras: Portugal/Brasil
Tipo de embarcação: Iate a vela
Travessias realizadas: 10
Tempo da travessia (média): 30 dias
Escravos transportados:1.257
Escravos mortos durante a viagem: 125
Escravos desembarcados no Brasil: 1.132
Porcentagem de escravos mortos durante a viagem: 10%
Já não era uma tarefa simples traficar escravos no período do segundo império brasileiro. Após o fim da escravidão no Haiti (1791), a proibição do comércio para os Estados Unidos (1808) e a abolição da escravidão nos territórios britânicos (1833), o cerco para terminar com a horrorosa prática escravista também se fechava no Brasil.
Embora o texto da Lei Feijó vetasse o desembarque de escravos do Brasil a partir 1831, a lei não teve eficácia, não pegou. Assim, na década de 1840, quando a Graciosa Vingativa, sem nenhuma graça, espalhava morte e tortura no Atlântico, a região mais perigosa da viagem não era a costa brasileira e, sim, a africana.
Era necessário, então, apostar em embarcações mais ligeiras, capazes de fugir de barcos estrangeiros. Não que a intenção de todas as forças estrangeiros fosse humanitária. Muitas vezes, a perseguição a navios negreiros se dava por disputa econômica mesmo.
O certo é que o iate a vela que levava o canalha nome de Graciosa Vingativa era muito veloz. Tanto que, em 1844, conseguiu fazer três viagens de ida e volta ao Brasil-Nigéria. Em janeiro, deixou Salvador e chegou a Lagos. Voltou a Salvador com 111 escravos subjulgados na região do Benim. Em março, o barco deixou novamente a Bahia e foi até Lagos, voltou em junho com mais 144 negros cativos. Repetiu o percurso em setembro, com mais 133 presos a bordo. Ao total, seis pernas de cerca de 30 dias cada. Um horror!
Conta o historiador Dale Graden que os carpinteiros baianos tornaram-se conhecidos por sua habilidade em reparar navios de madeira e “prepará-los/ adaptá-los” para viagens escravagistas, numa forma de escapar da vigilância estrangeira. Aliás, também vale lembrar que não havia navios construídos especialmente para acomodar tantas pessoas na travessia. As embarcações eram, na verdade, barcos mercantes.
Graciosa Vingativa, ao total, foi responsável pelo transporte de 1.257 escravos africanos. 125, 10% deles, não resistiram e morreram no caminho.

8. Regeneradora

Três embarcações sob esse nome (1823 a 1825)

Bandeiras: Portugal/BrasilTipo de embarcação: escuna, brigue e corvetaTravessias realizadas: 7Tempo da travessia (média): 30 diasEscravos transportados: 1.959Escravos mortos durante a viagem: 159Escravos desembarcados no Brasil: 1.800
Das sete viagens, quatro estão registradas sob comando de Bento José Francisco Fortes, o que pode indicar que ele trocava de barco, mas mantinha seu registro de nome mentiroso. Pesquisas a história de Bento José indicam que ele era também um comerciante de farinha, feijão e fumo para o sul do país. Em três anos, foram oito pernas Atlânticas para o capitão, que, só sob seu comando, foi responsável por arrancar 1.036 pessoas de sua terra natal para servir a outros na América. Um canalha!
Nas primeiras duas viagens das Regeneradoras, o roteiro era de ida e volta: Pernambuco — Luanda — Pernambuco. A partir da terceira viagem, a segunda do capitão Bento José, o tour aumentou: Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina, despejando seres humanos ao longo da costa do Brasil recém independente, como os chineses fazem com seus brinquedinhos, hoje, na Nova República.
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